top of page

REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS DA PANDEMIA DO COVID-19 NOS CONTRATOS

Os contratos são relações jurídicas caracterizadas pela bilateralidade, ou seja, a existência de duas partes que possuem obrigações uma com a outra de forma interligada, de modo que o direito de uma parte corresponda ao dever da outra parte e vice-versa.


Na compra e venda, por exemplo, ao poder do vendedor de exigir o preço corresponde o dever do comprador de pagar, ao passo que ao poder do comprador de exigir a entrega da coisa comprada, corresponde o dever do vendedor de entregar. Assim, ambas as partes são, na mesma relação jurídica, credor e devedor uma em relação à outra.


Em regra, quando uma das partes não cumpre o seu dever, ela incorre em inadimplemento, podendo o seu respectivo credor:


(i) exigir o cumprimento específico do dever descumprido (por exemplo, mediante ação do comprador que obrigue o vendedor a entregar o bem adquirido sob pena de busca e apreensão ou multa diária);


(ii) exigir o cumprimento do dever por seu equivalente pecuniário (por exemplo, quando pago alguém para executar um serviço e o serviço não é executado posso contratar outra pessoa para fazê-lo e cobrar o que gastei daquele que não executou); ou


(iii) desfazer o contrato com a consequência de retornarem às partes à mesma situação em que estavam antes de o contrato ser celebrado, desde que possível (assim, por exemplo, se o vendedor não entrega o bem adquirido posso considerar desfeito o contrato e pedir a devolução do que paguei; neste caso, sendo os valores reembolsados, o vendedor também não terá mais o dever de me entregar o bem).


Em todas essas situações é possível cumulativamente cobrar os prejuízos havidos com o inadimplemento (art. 475 do Código Civil). Por exemplo, se vendo determinado bem a uma pessoa e tenho custos com uma transportadora para entregar esse bem, caso o comprador descumpra seu dever de me pagar o preço, posso, além de exigir o preço, cobrar as despesas que tive com a transportadora e as eventuais despesas com a ação judicial necessária para realizar tal cobrança.


Esses prejuízos advindos do inadimplemento podem ser de antemão estimados pelas partes e pré-fixados como cláusula penal (art. 416 do Código Civil), popularmente conhecida como “multa”. Tanto a cláusula penal como os juros moratórios têm a função de compensar o credor pelos eventuais prejuízos decorrentes de um inadimplemento.


Ocorre que nem todo descumprimento de contrato é inadimplemento. E, portanto, nem todo descumprimento é passível de gerar as consequências tratadas nos parágrafos anteriores.

Quando fatos supervenientes, fora da esfera de previsibilidade e controle das partes, afetam o programa contratual, basicamente isto pode se enquadrar em 03 hipóteses dentro do Ordenamento Jurídico Brasileiro, cada uma com consequências próprias: (i) Impossibilidade; (ii) Imprevisão/onerosidade excessiva; (iii) Frustração. Internacionalmente, tais figuras são agrupadas como hipóteses de “frustration” ou “hardship”.


Raramente os exemplos da realidade coincidem tanto com as definições e exemplos acadêmicos. A Pandemia do COVID-19, contudo, é o exemplo perfeito capaz de se amoldar às hipóteses acima mencionadas. Como consequências da propagação do novo corona vírus e da respectiva necessidade de prevenção, eventos têm sido cancelados, fronteiras têm sido fechadas, programações têm sido frustradas.


Além disso, com as pessoas permanecendo em casa há queda na demanda e na produção (tanto em virtude da própria queda na demanda quanto em razão do fato de que os próprios responsáveis pela produção, os trabalhadores, muitas vezes têm sua atuação limitada). Isto tem causado desabastecimento do mercado e abruptas variações nos preços (tanto negativas quanto positivas). Veremos como o direito pode reagir a tais situações.


IMPOSSIBILIDADE


– Definição

Ocorre quando um fato superveniente, fora da margem de previsibilidade e controle das partes, impede o cumprimento de determinada obrigação.


– Exemplos


1 – Se uma empresa é contratada para produzir um evento, e, na véspera, o Poder Público proíbe a realização para evitar aglomerações e conter a propagação do vírus;

2 – Se comprei uma passagem aérea para determinado país, que, para conter a propagação do vírus, determina o fechamento da fronteira na época em que a viagem estava programada.


– Consequências


Nestes casos o cumprimento da obrigação, ainda que as partes queiram, é impossível. O devedor, portanto, não será responsabilizado pelos eventuais prejuízos do credor ou por eventuais penalidades contratuais. Tampouco poderá o credor demandar o cumprimento específico ou pelo equivalente pecuniário.

A consequência será o desfazimento do contrato, desobrigando ambas as partes de suas respectivas prestações.


Sem embargo, se, por um lado, o credor não poderá cobrar seus prejuízos do devedor que descumpre a obrigação por impossibilidade, por outro lado como ficam os prejuízos do devedor no caso da empresa contratada para a realização do evento que não pôde realiza-lo? Além de não poder cobrar o preço acordado (pois o contrato foi desfeito) certamente terá prejuízos com a estrutura mobilizada e montada para o evento que foi adquirida, decoração, rescisão de funcionários contratados especificamente para o evento.

Isto é o que se chama de risco da prestação. Em regra, cada parte responde pelos riscos associados à suas próprias obrigações. O risco da prestação pertence do devedor, assim como o proprietário suporta o risco do perecimento da coisa antes da tradição (art. 234, Código Civil).


Neste ponto reside a importância de um contrato bem feito, pois a despeito da alocação de riscos estabelecida em Lei, as partes têm liberdade para realizar alocação diversa, podendo inverter a matriz de riscos, segmenta-la e até mesmo compartilhar equitativamente os riscos suportando conjuntamente os custos decorrentes de um evento de força maior. Clássico exemplo de alocações convencionais de riscos são globalmente conhecidos Incoterms.

Ademais, caso o contrato possa ser mantido e a obrigação ainda possa ser cumprida em outra data ou de outra forma, diversas das originalmente previstas no contrato (evento por videoconferência, por exemplo), as partes poderão realizar a revisão e a adaptação do contrato.


Isto tem especial relevância quando se fala dos chamados “deveres laterais ou anexos”; isto é, aqueles deveres que não constituem o objeto principal do contrato, mas lhe servem de suporte, para que se atinja sua finalidade: o adimplemento. Um desses deveres é o de cooperação, extraído da cláusula geral da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil). Assim, voltando ao exemplo, se é possível e ainda objetivamente útil ao credor que o devedor realize o evento em outra data, ou de outra forma, e isto evitaria um grande prejuízo ao devedor, abre-se caminho para a revisão e adaptação do contrato com fundamento no dever de cooperação e no dever de mitigação, ambos amparados, no Código Civil Brasileiro, pela cláusula geral da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil).


Este último – dever de mitigação – encontra-se expressamente previsto na Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 8.327/2014.


Essa lógica deve prevalecer inclusive nas relações de consumo regidas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) na medida em que as alternativas potestativas listadas no §1º do art. 18, CDC pressupõem o inadimplemento do fornecedor – que não se confunde com impossibilidade – e a boa-fé objetiva também é fundamento do Direito do Consumidor. No exemplo da compra de passagem aérea, se o consumidor iria viajar por conta de compromisso específico a ser realizado naquela data, certamente terá direito ao reembolso total do preço da passagem.


Por outro lado, se se tratava de uma viagem de passeio, que pode ser remarcada sem prejuízo algum, e isto seria capaz de mitigar os prejuízos da empresa de aviação, o dever de cooperação e mitigação podem limitar o direito do consumidor a desfazer o contrato e impor, ao revés, sua adaptação.


IMPREVISÃO/ONEROSIDADE EXCESSIVA


– Definição

Similar à impossibilidade, porém nesta hipótese a prestação ainda é possível de ser realizada, apenas seu valor sofre abrupta variação, tornando-a excessivamente onerosa para uma das partes.


– Exemplo


Um contrato prevê a construção de um edifício até determinada data por um preço pré-acordado. No contrato, a construtora é responsável por fornecer os materiais necessários para a construção. Pode ocorrer de alguns desses materiais terem sua produção reduzida em virtude da Pandemia, o que pode gerar escassez e aumento substancial de preço, ou então os materiais podem ser importados de países bastante afetados pelo vírus, dificultando ou atrasando seu recebimento.


– Consequências


Se a obrigação da construtora tornar-se excessivamente onerosa em razão da imprevisível majoração do custo de seus insumos, abre-se o caminho da resolução contratual, desobrigando-se ambas as partes, ou da revisão do contrato, possibilitando a readequação do preço pela construtora. A manutenção do contrato com a imposição de sua revisão, neste caso, encontra previsão expressa nos artigos 317, 479 e 480 do Código Civil. Cabe ressaltar que, no âmbito do direito do Consumidor, se a obrigação do Consumidor tornar-se excessivamente onerosa em razão de algum fato superveniente, o mesmo não precisará provar que o fato era imprevisível para obter a resolução do contrato ou sua adaptação, nos termos do art. 6º, V, CDC.


FRUSTRAÇÃO


– Definição


Neste caso, as prestações cabíveis às partes no Contrato são perfeitamente possíveis de serem executadas (diversamente da impossibilidade) e não sofrem qualquer alteração (diversamente da onerosidade excessiva); entretanto, a finalidade do contrato, a causa que levou as partes a celebrarem o contrato, perde-se, ficando frustrado seu objetivo.


– Exemplo


Realizando-se pequena alteração no exemplo dado ao explicar a Impossibilidade, sobre compra de passagem aérea, imagine-se que o país de destino ainda esteja com a fronteira aberta na data programada para a viagem (o que descarta a impossibilidade no cumprimento da obrigação), mas que a causa da aquisição da passagem aérea era um pacote turístico com o intuito de conhecer e explorar o local de destino. Entretanto, em razão do receio da Pandemia, as principais atrações turísticas do local são temporariamente fechadas, gerando a frustração do fim para o qual o contrato (aquisição das passagens) foi originalmente celebrado.


– Consequências


No direito brasileiro, a relação obrigacional é uma relação de cooperação entre as partes processualmente orientada a uma finalidade comum. Se esta finalidade se perde, o dever de cooperação também perde seu sentido, implicando no desfazimento (resolução) do contrato sem a incidência de qualquer penalidade (eis que não se trata de inadimplemento), ou sua eventual adaptação. Não pode o credor exigir o cumprimento de uma obrigação desfuncionalizada, sob pena de incorrer em abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil. A figura da frustração do fim do contrato, como causa da resolução ou revisão contratual, já foi reconhecida pela jurisprudência brasileira e encontra-se definida no Enunciado 166 da III Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF).


Todas essas reflexões têm o objetivo de iluminar alternativas jurídicas para os inevitáveis problemas que têm surgido nas relações contratuais, bem como apontar para a importância de aconselhamento técnico na avaliação de cada situação concreta.


Victor Augusto Machado Santos

Sócio e Advogado atuante nas áreas de Direito Civil e Direito Empresarial do ZO&M.

Para saber mais acesse: https://www.zomadv.com/

0 visualização0 comentário
bottom of page